Um cheiro de coisa antiga
Quando se passeia nos Shoppings, qualquer que seja, se sente um ambiente inodoro, impessoal; todos se parecem, na estrutura de catedral comum do consumismo; portanto, passeia-se ali, mas negando-se a especificidade da coisa local, tanto eles se equivalem. Em literatura é o inverso (e prosa?): um espaço à parte, cada página. Aliás, página e paisagem têm uma distante raiz comum. Lembro um momento do Memórias de Adriano: ele diz que os livros foram suas primeiras pátrias. Gosto disso.
Os espíritos mais originais foram variados, de muitos lugares; Paulo, o apóstolo, é educado por Gamaliel, um judeu, nasce na Turquia, é cidadão romano e conhece bem a cultura grega. Adriano é espanhol, cidadão romano, tem a Grécia por pátria interior. É a isso que Montaigne chama mestiço: alguém que responde por diversos registros culturais; hoje a gente vai dizer; um intercultural. Os livros são lugares; acolhem, como uma pátria; claro: podem também ser nocivos, deixar alguém presunçoso, um chato. Mas, no melhor, pode ser um lugar agregador das tantas ricas experiências humanas. As leituras criam também uma grande família: vendo um filme turco, um ator me pareceu familiar; é que ele a cara de Flaubert, portanto, familiar.
Vai diminuindo o espaço da literatura no currículo escolar? É pena: ela vai, talvez, voltar à dimensão das catacumbas, tempo de outro fervor fértil; talvez sobreviva, galhardamente até, persistindo em pequenos grupos nas redes sociais. Como o recato dos vitorianos incentivou a libido dos ingleses. O desejo de literatura resiste à estreiteza e estupidez dos fazedores de currículo rezando por uma escola produtiva, linkada e respondendo apenas às demandas do capital. Certamente se vai discutir literatura em alguns blogs, sites; são as novas praças.
Um professor de hidráulica se cumpre quando, consciencioso, passa as informações de sua pesquisa; seu propósito é um discurso que resolva problemas; um de literatura instaura problemas, quando quer propor os possíveis; esse de literatura tem tarefa mais ingrata porque mais complexa: ele é seu ofício; ensina coisa improvável: uma sensibilidade, uma forma de percepção de mundo. A transfiguração do mundo em linguagem. A gente tende a esquecer que os valores sociais estão determinados – e minados – por nossa linguagem. Mesmo a consciência não saberia de si sem a linguagem. É bom não subestimar a força soft da linguagem: é essa energia soft que vai organizar, gerenciar, administrar as sociedades. A sociedade está ligada a esse fundamento vivo da comunicação; e mais: da transmissão. Por isso importa o trabalho com a linguagem: porque é, através da e na linguagem, que se constroem os credos, a constituição, as ideologias – e, ao mesmo tempo, seu antídoto: a dúvida, a interrogante; isso faz avançar a cultura; cria anticorpos – que impedem o corpo social de esclerosar em qualquer discurso totalitário, polarizado. Sem essas sugestões literárias as coisas culturais congelam, endurecem numa ilusão de consenso, de evidência. E as noções de pátria, ordem, razão, virtude, se impõem e se prostituem nos discursos das redes sociais. Então, como desistir de literatura? Pode um coletivo sem projeto? É na literatura que as palavras dão prazer e se fazem fecundas. Shoppings nem cheiram nem fedem; literatura pode apontar o podre; às vezes vem de um espaço escuro de nós pedindo luz; se desaparecer dos currículos oficiais, aparece adiante, como nas catacumbas romanas, como exigência irreprimível de viver e de pensar livres.